22 DE JULHO DE 2012 -
6H49
Nildo Ouriques: FHC
plagiou intelectuais banidos pela ditadura
Foram
necessários 43 anos para que Subdesenvolvimento e Revolução, do mineiro Ruy
Mauro Marini, desse o ar da graça no Brasil. Publicada pela primeira vez no
México em 1969, a obra clássica do marxismo brasileiro ganhou edições em
diversos países, inclusive naqueles da América Latina a viver sob o jugo de
ditaduras.
Por
Gianni Carta, em CartaCapital
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Ruy Mauro Marini Google Imagem |
O
que nos leva a perguntar: por que tanto tempo para se reconhecer um grande
intelectual brasileiro? Marini (1932-1998), presidente da Política Operária
(Polop) e autor de Dialética e Dependência, passou 20 anos no exílio a partir
do golpe de 1964. Professor no México e no Chile, onde dirigiu o Movimento de
Izquierda Revolucionária (MIR), ele não era, é óbvio, bem-vindo pela ditadura
brasileira.
Sua
obra continuou, porém, a ser censurada durante a chamada “transição
democrática”. Nas palavras de Nildo Ouriques, autor da apresentação de
Subdesenvolvimento e Revolução (Editora Insular, 2012, 270 págs.), professor do
Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de
Santa Catarina e ex-presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC,
a hegemonia liberal “monitorada” por Washington queria uma transição isenta de
teorias radicais como aquelas de subdesenvolvimento e dependência de Marini.
Segundo
Ouriques, nessa empreitada para marginalizar radicais, Fernando Henrique
Cardoso e José Serra serviram à hegemonia liberal e, entre outros feitos,
adulteraram um famoso texto de Marini. Na esteira, FHC pegou carona para
“formular” a teoria da dependência que o tornou famoso.
Subdesenvolvimento
e Revolução, iniciativa do Iela-UFSC, inaugura a coleção de livros críticos que
serão publicados pela primeira vez no Brasil pela Pátria Grande: Biblioteca do
Pensamento Crítico Latino-Americano.
CartaCapital:
Como explicar a popularidade intelectual de Ruy Mauro Marini mundo afora?
Nildo
Ouriques: A importância do Marini é teórica e política. Ele tinha rigor
teórico, metodológico, e expressava a visão da ortodoxia marxista. Na
experiência brasileira, e aqui me refiro ao grande movimento de massas
interrompido com a derrubada de João Goulart em 1964, ele polemizou a tese
socialista chilena no sentido de afirmar os limites da transição pacífica ao
socialismo. Soube usar a pista deixada por André Gunder Frank do
desenvolvimento do subdesenvolvimento e fez a melhor crítica aos postulados
estruturalistas dos cepalinos. Fernando Henrique Cardoso, José Serra e em parte
Maria da Conceição Tavares divulgavam o debate sobre a dependência como se não
fosse possível haver desenvolvimento no Brasil.
Para
Marini, haveria desenvolvimento, mas seria o desenvolvimento do
subdesenvolvimento. A tese de Frank tinha consistência, mas não estava
sustentada plenamente na concepção marxista. Marini, por meio da dialética da
dependência, deu acabamento para a tese que é insuperável até hoje. Daí a
repercussão do seu trabalho na Itália, França, Alemanha, sobretudo nos demais
países latino-americanos, inclusive aqueles submetidos a ditaduras, com exceção
do Brasil.
CC: O senhor
escreveu na introdução do livro que a teoria da dependência de Fernando
Henrique Cardoso foi influenciada pela hegemonia liberal burguesa.
NO: Indiscutivelmente. Os
fatos agora demonstram claramente que FHC estava a favor de um projeto de
Washington de conter movimentos intelectuais radicais no Brasil. Uma das metas
de Fernando Henrique e José Serra era minar o terreno de radicais como Marini.
Em 1978, Fernando Henrique e Serra, que havia ganhado uma bolsa nos Estados
Unidos, passaram, na volta ao Brasil, pelo México.
Marini
dirigia a Revista Mexicana de Sociologia (RMS), da Universidade Nacional
Autônoma do México (Unam). Eles deixaram um texto de crítica ao Marini, As
Desventuras da Dialética da Dependência, assinado por ambos. Marini disse que
publicaria o texto desde que na mesma edição da RMS de 1978 constasse uma
resposta crítica de sua autoria. FHC e Serra concordaram. E assim foi feito. Em
1979, FHC e Serra publicaram As Desventuras nos Cadernos do Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento) número 23. A dupla desrespeitou a prática
editorial que Marini lhes reservou no México. Em suma, a resposta de Marini não
foi publicada aqui.
CC: FHC e
Serra teriam adulterado o texto por eles assinado ao se referir a um conceito
econômico de Marini.
NO:
Alteraram um conceito fundamental na teoria de Marini: o da economia
exportadora. Marini previa a redução do mercado interno e a apologia da
economia exportadora no Brasil. Segundo ele, com a superexploração da força de
trabalho não há salário e mercado interno para garantir a reprodução ampliada
do capital de maneira permanente. A veloz tendência da expansão das empresas
brasileiras força-as a sair do País, e no exterior elas encontram outras
burguesias ultracompetitivas.
Fernando
Henrique e Serra mudaram o conceito de “economia exportadora” e substituíram
por “economia agroexportadora” no texto publicado pelo Cebrap. Marini falava
que o Brasil exportaria produtos industriais, inclusive aviões, como de fato
exportamos. Mas isso não muda nada. A tendência da economia exportadora implica
a drástica limitação do mercado interno. FHC e Serra queriam levantar a
hipótese de que Marini não previa a possibilidade de o Brasil se
industrializar. Em suma, Marini seria, segundo FHC e Serra, o autor da tese de
que no Brasil se estava criando uma economia agroexportadora. Essa adulteração
do texto numa questão tão central não ocorre por acaso.
CC: Mas FHC,
apesar disso, é tido como o pai da teoria da dependência.
NO:
É rigorosamente falso e irônico. Ele e Serra tinham a meta de bloquear essa
tendência mais radical, mais ortodoxa, mais rigorosa do ponto de vista
analítico de, entre outros, Marini, e pegaram carona. Daí a astúcia, no
interior do debate mais importante na área de Ciências Sociais na América
Latina: o da teoria da dependência. E nesse contexto se apresentaram como os
pais da famosa teoria, especialmente FHC, quando em parceria com Enzo Falleto
publica Dependência e Desenvolvimento na América Latina.
À
época, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) já não
tinha condições para defender seus projetos teórico e político, e eles se
apresentam como interlocutores nesse debate. Visavam por um lado recuperar as
posições cepalinas e de outro evitar o radicalismo político. E foram exitosos,
turbinados pelas elites nacional e internacional favoráveis a um projeto de
transição lenta, gradual e segura. Um projeto dessa natureza precisa ter uma
direita clássica, fascista etc., e também uma versão liberal na qual se encaixa
Fernando Henrique Cardoso.
CC: E o que ele
representava?
NO:
De fato, ele encabeçou a oposição liberal à ditadura. Tornou-se suplente de
senador de Franco Montoro e logo em seguida com a eleição deste para o governo
do estado se transformou no grande modelo de intelectual político “dentro da ordem”,
para usar uma feliz expressão de Florestan Fernandes. Não é um movimento fútil
o de FHC. Ele percebe a política do Partido Democrático em Washington, no
sentido de democratizar o Brasil, percebe o movimento da elite empresarial em
São Paulo por meio do manifesto de 1977 contra o gigantismo estatal e percebe o
movimento de massa pelo crescimento do MDB. E assim teve uma brilhante carreira
política. Idem o Serra, para falar de políticos mais notórios. E conseguiram
produzir numerosos intelectuais no mundo universitário, exceto a
intelectualidade que estava mais presa a um novo sindicalismo e ao petismo.
CC: O FHC
parece não ter muita credibilidade no mundo acadêmico.
NO:
Ele não tem uma obra. Fernando Henrique é no máximo um polemista no interior de
um debate acadêmico (dependência) no qual ele não era a figura principal. Mas
cumpriu o papel decisivo no sentido de bloquear, coisa que fez com certa
eficácia, as correntes mais vitais desse debate. Teve êxito especialmente com a
obra de Marini, mas também com livros muito importantes de Theotonio dos
Santos, Imperialismo e Dependência, ou Socialismo ou Fascismo, o Novo Dilema
Latino-Americano, este publicado até em chinês, mas jamais no Brasil.
CC: Marini
concordaria com o senhor que o discurso sobre a nova classe média é uma forma
de legitimar o subdesenvolvimento no Brasil?
NO:
Completamente. Esse debate esconde algo fundamental, a gigantesca concentração
de renda. Enquanto se fala na ascensão da classe média, a pobreza é muito
maior: 76% da população economicamente ativa vive com até três salários
mínimos, 1,5 mil reais. Ou seja, nem sequer alcançam o salário mínimo do
Dieese. Com meu salário de professor em greve (por aumento salarial), pertenço
aos 24% mais ricos da sociedade, ao lado do Eike Batista.
CC: Mas, de
fato, Lula elevou o nível de vida de milhões de brasileiros.
NO:
Lula fez política social. O problema de Fernando Henrique e José Serra é que
eles odeiam o povo. FHC não tinha uma política social para o País. Mas política
social não traz emprego e renda. Num país subdesenvolvido, inclusive numa
estratégia revolucionária, é preciso ter programas emergenciais. A estratégia
da erradicação da pobreza de Dilma Rousseff não pode ser realizada
exclusivamente com política social. O petismo está mostrando seus limites
porque terá de confrontar o poder, o prestígio social e a elite. Se não
enfrentar tudo isso, será devorado.